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Who tells your story?

Semana passada, eu estava ouvindo podcast enquanto cumpria minha meia hora de esteira na academia. Passando por uma série do Chico Felitti – não, calma, a outra –, a narração dele sobre como tentou conversar com antigos atrasados do Enem incluiu uma dessas moças: ela primeiro aceitou dar entrevista, remarcou algumas vezes, até finalmente confessar ao telefone que não conversaria com ele em momento nenhum. O motivo dela para isso é o que ficou na minha cabeça e ressurgiu agorinha, enquanto eu escovava o dente antes de dormir: ela disse que não queria falar com ele porque pressupunha-se que hoje ela falaria sobre como superou a humilhação de ficar presa do portão, com gente rindo, fotografando, entrevistando. Outros entrevistados falaram justamente sobre isso: no ano seguinte fizeram de novo e passaram, conseguiram prouni; de alguma maneira tinham superado o episódio terrível que era o espetáculo dos atrasados do Enem na década passada. Essa moça, não: ela sentia que a vida dela hoje não era um fim da história do qual ela se orgulhava. Se ela desse entrevista nesse momento, em que ela não superou, não deu a volta por cima e saiu vitoriosa, essa seria a narrativa dela. A história acabaria ali, e o ato de recusar a entrevista foi sua maneira de comunicar que não tinha acabado ainda.

Fiquei intrigada com ela maneira de tomar o controle da narrativa da própria vida, ainda que seja pela teimosia, porque semana passada morreu de repente uma pessoa que eu conhecia (não era íntima minha, mas eu conhecia o suficiente para ir ao enterro). Esse cara teve uma soma final muito triste. Estava sozinho, bebia há anos, não cuidava da saúde, abusava dos familiares e, quando casado, abusava das esposas também. Mês passado, estive num almoço em que ele estava também, e senti uma mistura de pena e riso quando estávamos falando sobre elevadores de parques de diversões e ele apareceu com manuais de elevadores de verdade – ele tinha trabalhado em construções das olimpíadas no Rio e claramente aquele era um trabalho que tinha lhe marcado pra cortar o efeito da cachaça e para ele ir buscar os manuais antigos provando que, sim, ele tinha participado daquela grande coisa.

Eu já estava ao longo do dia deprimente pensando no desperdício de vida, raciocínio esse que, claro, me levou a pensar em como estou desperdiçando a minha vida, o que me levou de volta ao momento em abril quando pensei (não pensei; parecia que meu corpo ia se mexer sozinho) em pular do décimo andar, e eu por um bom tempo me senti como ele; passando pelos dias como dá, ciente que o melhor já passou, que ambições são inúteis e que existem, sim, limites de onde a gente pode chegar. Enquanto isso, minha amiga começava a desenvolver o processo de luto pelo irmão; contou de quando ele cometeu uma gafe, contou de quando eles brigaram na semana anterior, contou de quando a ex-esposa dele também foi escrota (e vou evitar os detalhes dessas histórias que não são minhas). Quando o sol estava descendo – estávamos no alpendre da casa dela, um latão de cerveja diante de cada uma em plena terça-feira útil –, o assunto tinha virado para música. Mencionei que tinha odiado um passeio num evento de rock que tinha feito recentemente; ela disse que tinha gostado muito, ido de novo, e de repente os olhos dela se abriram mais: ela lembrou da vez em que comprou uma camisa do Iron Maiden num show em São Paulo e trouxe para esse irmão dela. Ela olhou pra linha do muro, deu uma puxada no cigarro e me disse: “Nossa. Consegui achar uma lembrança boa que tenho com ele”. Dali pra frente, parecia que uma fase de sofrimento (dentre várias) do luto tinha amainado.

A história desse homem, diferentemente da atrasada do Enem, não está mais sob o controle dele. Quem conta essa história agora é a irmã, a sobrinha, a mãe que enterrou o filho, sou eu aqui nesse blog que ninguém lê. Por isso, acho, que me vi pensando na atrasada do Enem: ela está fudida também (sinceramente, que não está?), mas ela quer ao menos reter controle de como a narrativa dela funciona, não só para os curiosos de podcast, mas para si mesma, eu imagino.

Eu tenho um rascunho de post parado aqui no blog há um mês, sobre como eu não virei uma professora. Sinceramente? Eu não consigo terminar aquele texto, porque ele não é honesto. Eu falo das coisas que me fazem má professora, das chatices dos alunos, do processo insano e muitas vezes injusto que é conseguir emprego como professor de federal. Todos esses são mecanismos (que infelizmente eu enxergo) para eu tentar não sofrer tanto com o fato de que eu não vou atingir esse sonho que eu tive durante todo tempo. De maneira muito pior do que a moça, eu estava tentando controlar a minha narrativa… Mentindo pra mim mesma. É claro que dar aula dá um puta trabalho. Ao menos no início, cada aula preparada leva o tempo de um seminário de pesquisa de pós, quase. Se eu falo que eu não dou certo como professora, o tempo dedicado a fazer mestrado e doutorado parece que dói menos; parece que dói menos ter me dedicado e não ter conseguido; dói menos fazer trabalhos precarizados ou fora do que eu planejei pra mim.

Tem um mote que se repete ao longo de todo o desenvolvimento do musical Hamilton, meu favorito. Ele é explicitado na música em que George Washington conversa em particular com o protagonista pela primeira vez, e depois é repetido ou alterado:

Let me tell you what I wish I’d known / When I was given my first command
You have no control / Who lives, who dies, who tells your story

Não é possível que só eu tenha essa angústia: quanto tempo até o esquecimento completo? Qual controle eu posso exercer sobre a minha narrativa? Por que eu não consigo juntar força para seguir o cretino conselho de “estudar e pesquisar depois de trabalhar, perseverar, não desistir” etc.? Eu me sinto entregue. Às vezes eu me culpo, porque eu não tinha que criar expectativas grandiosas de coisas que eu claramente não tinha como conseguir ser, sabe? Os sinais estavam lá durante os anos de mestrado e doutorado; só eu que, arrogante, achei que não significavam nada. Eu queria que a minha história fosse a de alguém que veio de uma família pobre no interior, que aproveitou as oportunidades que surgiram, que fez uma vida nova do zero em uma cidade grande e foi estudando e conseguiu virar professora federal. A realidade é que não só eu não consegui, como não há mais oportunidades – e mesmo se houvesse, eu sinto que algo irreparável morreu em mim, uma confiança na minha capacidade, e que vou me torturar passando por isso de novo – e eu não tenho publicação quase nenhuma. Também não consigo me motivar a publicar. Tudo parece inútil; parece que estou fazendo uma dança para ninguém. A verdade é que eu estou sozinha no meu apartamento, cuidando de quatro gatos, trabalhando com qualquer coisa envolvendo texto e o par inglês-português, sem nenhuma confiança de que estou fazendo nem isso direito, a dona do apartamento pediu ele de volta, enquanto isso o aluguel subiu 10%, eu me endividei viajando para fazer as mesmas provas que quebraram qualquer resquício de espírito que tinha sobrevivido a dois anos de pandemia, então é o seguinte: eu não tenho controle sobre a minha história. Eu quero parar de reclamar, juro que quero. Quero fazer da narrativa da minha vida algo que valha a pena. Porém, sinceramente, todo dia quando acabo de trabalhar, eu só me sinto exausta.

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Peso de papel

A primeira vez em que eu me olhei no espelho e me achei gorda eu tinha uns 6 ou 7 anos. O único espelho da casa na época era aquele em cima da pia do banheiro. Criança que era, eu precisei subir na privada, os pés em cada lado pra distribuir o peso. No espelho então dava pra ver da cintura pra cima. Eu me lembro de pegar com a mão esquerda num pneuzinho, olhar meu formato de corpo meio quadrado meio torto e constatar: é, eu sou gorda.

A loucura disso não é apenas que eu era criança, extremamente criança, na época, mas sim que na verdade eu era magra. E continuei sendo magra durante a infância, adolescência e começo da vida adulta. Na escola, lá pela sétima série, pesaram e mediram a altura de todas as crianças: eu tinha (ainda tenho) 1,68m e pesava 57 quilos. Só de falar esse número em voz alta e pensar que ele definiu minha forma física em qualquer momento da minha vida me causa uma distorção do tempo-espaço, quase uma dissociação: não é possível que esse corpo que eu hoje carrego de um lado pro outro algum dia chegou a pesar só 57 quilos. Dito isso, eu me lembro de pensar, com preocupação, que era o segundo maior peso da sala – claro, nunca considerando que eu era também a segunda menina mais alta (as pessoas na cidade onde eu nasci são bem baixinhas, mesmo). Na adolescência não sofri nenhum bullying relacionado a peso mas, estranhamente, a ideia de que eu era gorda – e, logo, que não merecia afeto de homens, já que eu era hetero – permaneceu. Ninguém nunca me xingou de gorda, avaliou como gorda, nada. Mesmo assim, a ideia indisputada e formada com uma certeza invejável ainda morava ali.

Nesse momento, quando eu caía na bobagem de abordar esse assunto em terapia, vinha a pergunta que meio que me faz ver todos os psicólogos como um papagaio: “será que não é a sua mãe que fazia você se sentir assim?”. Só que essa resposta, além de muito fácil, além de me fazer virar o olho, não responde sozinha, porque a minha mãe foi apenas uma força gordofóbica entre várias outras ao longo dos anos. Afinal, você podia indicar como fatores também a própria pesagem dentro da escola ou os padrões de beleza dos anos 90, que eram, credo, coisa que nem vale a pena lembrar. A questão também é que essa gordofobia entranhada também foi um filtro que eu lancei sobre o valor das pessoas que eu conhecia: fulana é inteligente, é gente boa, mas é gorda, né… Coitada. Chegou tão perto de ser alguém que valesse a pena. Essa visão não era só minha, e sim da comunidade onde eu estava inserida. Outros preconceitos eu consegui ou estou conseguindo trabalhar até hoje; porém, a gordofobia, especialmente a entranhada sobre o valor que eu (não) me dou, essa se mantém e ainda me afeta todos os dias.

Com a vinda pra Belo Horizonte e o início da faculdade, eu demorei na verdade a deixar de ser magra; além do metabolismo de jovem, eu andava pelo campus o dia inteiro, comia no bandeijão e não tinha dinheiro para luxo ou para fast-food. Meu primeiro ganho de peso foi, justamente, no ano que passei fora fazendo intercâmbio na Inglaterra. Foi o período mais pobre da minha vida, quando passei mais perrengue, e inclusive foi quando mais andei, porque eu trabalhava como garçonete de eventos e a cada dia tinha que descobrir onde o lugar do turno daquele dia seria. Mesmo assim, eu ganhei peso, mas não foi muito. Na verdade, eu nem tinha percebido que tinha ganhado peso até voltar ao Brasil, encontrar uma antiga colega de grupo de pesquisa na cantina e ela dizer, a seco: “Nossa, mas cê voltou gorda de lá, hein?”.

A partir daí, eu comecei um ciclo de aceitação-negação sobre ganho de peso. No começo do mestrado fiz uma dieta radical, que até funcionou mas, como a gente conhece dieta, depois acabei recuperando os quilos. Continuei ganhando peso ao longo dos anos; isso devagar começou a afetar roupas que eu usava (saias, nunca mais), começou a afetar se eu ia no médico ou não, começou a afetar se eu achava que meu namorado ia terminar comigo. Nesse ponto, estou falando em média de quando tinha 25 anos. Antes, eu me achava gorda de um jeito que me impedia de usar biquíni, ou de comprar uma calça 40. Agora, eu estava esperando o dia em que o meu ganho me faria cruzar um limiar entre alguém desejável e interessante para a “coitada”.

Eu não sei pra vocês, mas a gordofobia que eu exerço contra mim mesma tem um mote muito simples. Não importa se eu estou indo bem na minha carreira (se eu consegui mestrado, doutorado, bolsa pra estudar no exterior, defesa bem-sucedida, dois cargos em universidades públicas); não importa se eu tenho um relacionamento amoroso saudável; não importa se eu sou responsável financeiramente e consegui juntar um dinheiro durante a pior recessão brasileira desde quando fui criança; não importa se eu resgato animais, encontro meus amigos, faço exercício, uso máscara, arrumo paciência pra ir visitar minha família; nada disso importa, porque enquanto eu fazia tudo isso, eu também era gorda.

Hoje, pós-pandemia, eu estou na casa dos 80 quilos; tem dia que é 81, tem dia que é 84 (eu sei, varia muito, me poupe das sugestões de água com limão). Já tem cinco anos que eu passei a me exercitar regularmente. Desde então, inúmeras vezes eu já me coloquei em situações que poderiam ter feito muito mal à minha saúde, exclusivamente porque eu odeio o formato do meu corpo: eu já comprei receita de remédio controlado, já comprei remédio pra alterar a retenção de gorduras do meu intestino, já tentei vomitar (sim) mas não consegui; ano passado, tentei comprar sibutramina online, porque não queria passar pela humilhação de ir no médico. Só não comprei porque não conseguia ter nenhuma garantia que era de fato isso que mandariam no correio.

Na virada de 2021 pra 2022, eu peguei a nova gripe (mas não corona. Desse eu continuo invicta, sabe-se lá como, porque desde que me vacinei ando tomando certas liberdades). Fiquei cinco dias sem comer direito, nada entrava. No final da doença, quando aquele véu entre a barriga roncando e o meu cérebro começou a se levantar, eu subi na balança e vi: 81 quilos (81.9 ainda é 81). Disso que eu vou falar agora eu tenho vergonha: eu fiquei muito feliz de ter perdido aqueles quilos e pensei em como eu poderia continuar perdendo se só não voltasse a comer. Porém, meu corpo sabe melhor do que eu como ficar vivo e felizmente ele tomou as rédeas. Por um mês, a cada refeição eu tinha vergonha duas vezes: vergonha de estar recuperando o peso perdido com doença e o vergonha de querer tanto ser magra a ponto de ficar feliz de castigar meu corpo daquele jeito. O meu corpo, enquanto gorda, virou esse muro das lamentações, que eu uso pra me castigar e pra demonstrar o quão pouco eu penso de mim mesma. Cada vez que eu faço um exame de rotina e volta tudo normal, de novo eu sinto vergonha duas vezes: eu estou saudável! Isso quer dizer que eu tenho um corpo plenamente competente e capaz, e não deveria me sentir tão horrível! Mas me sinto. Olho no espelho ou em fotos e tenho horror da minha imagem. Não consigo dissociar a racionalidade de que eu devia aceitar quem eu sou e como sou, e enxergar valor em mim independentemente do meu peso, do conhecimento racional de que eu estou de fato sendo gordofóbica comigo mesma e preciso quebrar esse ciclo. Tem uma voz dentro de mim ainda que fala muito alto: tudo na vida daria certo se eu fosse magra. O lado racional fala: a gente não vai se punir de novo e vai ter que aprender a viver com a lataria que a genética e seu estilo de vida deram. Ad infinitum.

Também me sinto mal por mais motivos! Mesmo com esse ganho que você consegue calcular lendo os números pelo texto, eu não sou obesa. Ou melhor, estou no limite entre sobrepeso e obesidade, o que não me coloca nem de longe entre o nicho demográfico que mais sofre com gordofobia. Muito pelo contrário! Note que, fora as estruturas que afetam os gordos em geral (assentos, roupas, médicos preconceituosos, mãe), eu não convivo com gente que me critica pela minha aparência. A tortura está, quase toda, dentro da minha cabeça. É aquela máxima: saber que você está fudido não significa que a fodeção acaba, só que além de sofrer a fodeção você também assiste enquanto ela acontece.

Então eu acho que eu queria explicar em palavras como tudo, tudo que eu faço, mesmo quando dá certo, na minha cabeça está errado, porque eu fiz aquilo enquanto gorda. E enquanto eu continuar gorda, seja por me forçar a ouvir meu lado racional, seja lá por que, vou continuar a achar que não mereço amor ou conquistas profissionais – uma ideia absurda e caótica, eu sei, mas que me faz de refém todos os dias.

Fugir

Querido diário

Hoje é uma entrada mais normal, mas não mais iluminada do que apareceu aqui nos últimos anos.

A boa notícia é que todos os adultos já estão vacinados com pelo menos a primeira dose. Mário e eu recebemos a coronavac. Nesse meio tempo, ele conseguiu uma bolsa de pós-doutorado na UNICAMP e eu estou trabalhando na UNEMAT, a estadual do Mato Grosso, pela internet, porque as universidades continuam fazendo tudo online, ao menos até o final do ano.

Acho que resolvi escrever porque ando me torturando.

Adulta, autossuficiente, vacinada – e tenho a impressão de que pouca coisa ou nada me traz alegria. Bares agora, mesmo podendo ir, não têm o mesmo apelo, porque são os lugares que vi cheios de egoístas, gente verdadeiramente monstruosa, meses a fio, saindo e se expondo e arriscando a vida das pessoas que trabalham, da família, de desconhecidos.

Pensei em tentar escrever ficção de novo. Mas uma coisa quebrou dentro de mim. Parece que só sobraram histórias sobre gente sendo horrível. Amor, empatia, compreensão – nada disso me soa verossímil mais. Quando eu escrevia, eu tinha um senso muito claro do que eu queria – queria ler histórias de certa forma, então as criava. Eu me enxergava, também, como agente do mundo, sabe. A verdade é que eu sou uma adulta comum, insignificante, cuja história não vale ser contada. Eu não me vejo mais como protagonista. A sensação é que eu passo os dias e as noites tentando não acrescentar ao horror que o mundo é e aos horrores que já causei aos outros no passado.

Falar de futuro virou uma coisa ridícula. Os momentos bons são espaçados, ensaiados, planejados. Nada é espontâneo porque é impossível ser espontâneo em uma pandemia e porque tá todo mundo exausto o tempo todo.

Não tenho força nem pra imaginar uma vida melhor, e essa é a pior parte. Não consigo mais fantasiar. Costumava dizer que um dia eu seria diretora da Letras da UFMG. Hoje, eu sei como ser professora universitária não significa nada. Muito pouca coisa significa alguma coisa. Tudo que a gente faz é insuficiente, pequeno, improvisado. Eu não sabia, na escalada por algumas coisas que eu consegui, que ia acabar descobrindo que essas coisas não valem mais nada.

Todo dia é uma sequência de mecanismos de sobrevivência. Gosto, fruição, alegria de estar vivo – eu sinto falta dessas coisas e tenho um medo aterrador que elas tenham se perdido para sempre.


O texto acima foi de verdade escrito no meu diário. Comecei a escrever aos 9 anos, quando ganhei um caderno perfumado de aniversário. Eu tinha uma certeza e uma confiança de que histórias eram a coisa mais legal que existia, e que um dia eu contaria histórias que fariam as pessoas felizes.

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Sobrevivência da mais escornada

Eu vou partir do pressuposto que você, como eu, não aguenta mais telas, ao mesmo tempo em que está colado aí pulando de um texto pra outro, de uma rede pra outra, e por aí vai. Eu escrevo esse grande nada no final de agosto de 2021, o que deveria sugerir que, como veterana de pandemia, as coisas deveriam doer menos, cansar menos.

No momento, a minha preocupação maior, a dois dias de ficar totalmente imunizada (minha segunda dose foi não na sexta passada, mas na anterior ainda), é que eu não tenho motivos para querer retomar nada. Preocupo de poder ir aos lugares – o que cá entre nós já é otimista pra caralho –, mas não querer. Não ver motivo em passar raiva vendo gente na rua.

Mês passado eu estava lendo um artigo, porque tinha prometido participar de um congresso, esqueci completamente e tive que desembolar pesquisa, argumentação e entrega em menos de uma semana, completamente por culpa minha. Vamos aqui pular as etapas em que eu nem sei por que digo que vou participar de qualquer coisa. Tem um gnomo dentro de mim que fica falando “VOU PARTICIPAR”, enquanto eu de verdade não quero levantar da cama, tampouco fazer um argumento complexo que ninguém vai ver sobre um livro aí. Não, vamos pular essa parte e ir direto pra ideia, em enormes e grosseiras pinceladas, que a autora fez nesse artigo que eu li. Ela falava sobre luto ecológico, luto planetário. Era uma dessas publicações que deixa a gente pra baixo pra caralho, refletindo sobre como a gente relaciona luto a algo individual ou no máximo comunitário na nossa sociedade, e que a gente não tá treinado pra sequer conseguir colocar dentro dessas cabecinhas de macaco estragado pela ansiedade que a gente tá triste porque o ecossistema, a natureza, o planeta, o que você quiser chamar, está morrendo. É um luto numa dimensão grande demais, que a gente nunca nem tentou ou precisou processar antes. Mas todo dia é luto. Quando não é literalmente por mortes, é por algum novo crime de responsabilidade, ou é porque algo horrível apareceu na timeline to twitter, ou é porque todo mundo com quem você trabalha é idiota, ou é porque… vai saber. Todo dia tem uma enxurrada de merda, então dá pra escolher qual que vai te arruinar.

Enfim. Aí essa autora do artigo argumenta que o livro tal lá traz um jeito de imaginar ir além disso. Como processar esse luto a nível de espécie? Tem algo que ajuda a processar esse trauma coletivo – eu não sei. Se vira aí.

A questão é que, apesar de não saber de soluções, mesmo com a casca grossa de um ano e meio de pandemia, eu tenho medo de ter me adaptado da pior forma possível: ficar em casa, não falar com ninguém, ficar com a pele frouxa e desbotada, sem mencionar ser hoje em dia a pessoa mais broxa do mundo – o medo é que isso agora é quem eu sou. Que eu não vou querer fazer nada, ou mesmo dar conta de fazer nada, mesmo se não houver mais nenhum impedimento no futuro.

Eu quero nunca mais ter que abrir um email. Cada videochamada faz um estrago na minha vida equivalente a três maços de cigarros. E olha que eu não tô podendo: tenho asma.

Se foder, viu.

Fugir

O desodorante

Semana passada, por acidente, eu comprei o mesmo desodorante que a minha mãe usava.

Desde os meus 18 anos, eu sempre usei o mesmo desodorante: o verde, aerosol, da Rexona. Não tem nenhum motivo especial. Alguém por acaso passou por um longo processo pra escolher o que vai comprar pra não feder no suvaco? Pois é. Tem o bamboo e tem o aloe vera, tanto faz (eu prefiro o bamboo), mas se for verde, aerosol, Rexona, eu tô feliz e compro.

O preço subiu muito nos últimos anos. Lembro de pagar sete reais nele, o que eu já achava caro, quando eu passava o mês com 300. Há dois meses, eu parei de achar o MEU desodorante. Procurei no supermercado e nas duas farmácias, nada. Cometi o sacrilégio de comprar um aerosol, verde, da Dove. Era o que tinha.

Semana passada, eu fui na farmácia. Eu vi a linha de aerosois da Rexona, nenhum verde. Vocês vão me achar morta antes de eu comprar um Rexona rosa, fedendo doce o dia inteiro. Peguei o mais próximo: um com romã e qualquer outra coisa, paguei quatorze (!!!) reais, fui pra próxima farmácia procurar um remédio que não tinha na primeira.

Nela, ahá! O verde, aerosol, Rexona, por onze reais. O bamboo, inclusive! Engoli o choro, comprei o remédio pra dormir, vim pra casa.

Quando acabou o Dove (errado de saída, infelizmente), fui usar esse vermelho, aerosol, Rexona: meu suvaco ficou limpo, fresquinho, mas o cheiro me perturbou.

Não demorou pra eu ter um momento alta literatura francesa e perceber que minha mãe usava aquele desodorante.

Eu não vou refletir sobre permanência da memória, nem sobre uma interação cruel ou carinhosa que tenhamos tido enquanto eu sentia aquele cheiro.

A questão é que, acidentalmente, eu comprei o mesmo desodorante que a minha mãe usava, e que eu ainda sou capaz de lembrar disso quando o uso, todos os dias.

A gente tinha um pé de romã em casa.

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Pombos em chamas

Ninguém mais tem energia pra discutir. Meio que na esteia da ferramenta de autocompletar, assim que um argumento entra nos nossos ouvidos, junto com ele vêm todos os outros que a gente escutou por associação. Quando alguém responde a “vidas negras importam” com “todas as vidas importam”, ou, pior ainda, com “vidas brancas importam”, geralmente eu e as pessoas que compartilham das minhas visões políticas param de escutar. Vou exercitar aqui o benefício da dúvida e extrapolar que isso é, amplamente, por cansaço e pela sensação de que se está entrando em uma conversa em que se já entrou dezenas de vezes. Um amigo meu chamou a esquerda brasileira de “pombro enxadrista” hoje, e agora estou concluindo que essa metáfora é extremamente útil.

A expressão, pra quem não conhece, se refere à máxima de que você não deve jogar xadrez com um pombo, porque ele só vai acabar cagando no tabuleiro, roubando as peças e achando que venceu.

Porém, enxergar debates sectaristas dentro dos meus colegas de visão política com a ideia do pombo enxadrista ajuda a ilustrar o seguinte sentimento: quando mencionamos valores ou ditames que nem são da esquerda, por exemplo, que a terra é redonda, que vacinas previnem grandes pandemias (cof cof), que a lei deve funcionar de maneira igual para todos, que a vida é mais importante que o dinheiro, com muita frequência alguém de camisa laranja diz rapidamente que, “se puder fazer um pouquinho o advogado do diabo…”… Nesse momento, na minha cabeça, eu já vejo aquela conversa como um tabuleiro de xadrez: ele vai falar que o benefício maior na verdade sempre ocorre sobre a opressão de outros / ele vai falar que leu na internet que vacinas na verdade dão autismo ou controlam as mentes ou os fetos da pepsi; eu vou, cheia de energia e boa vontade, dizer que a situação não é exatamente essa, vou falar do problema da confiabilidade de fontes; em seguida ele vai dizer que: se eu devo desconfiar de fontes, por que eu não desconfio das minhas? Logo, vou ouvir que a ciência é tão fé quanto religião. Vou ouvir que racismo é horrível, mas que nada justifica vandalismo porque o pai dele trabalhou muito a vida toda pra ele poder estudar e ter ido pra universidade.

Toda essa conversa se projeta, pra além de onde o olho enxerga, bem depois de onde Mufasa mostra pra Simba os limites de seu reino; em segundos, eu olho a pessoa nos olhos e desisto. Fecho a boca, arrumo o cabelo, vou reclamar no twitter. Eu olho praquele tabuleiro, e mesmo se enxergo a vitória (que seria no caso convencer a pessoa a reavaliar o jeito de pensar, pelo menos), decido que o exercício não merece o esforço, porque no final ele vai continuar achando que uma vidraça quebrada equivale a um homem tomar joelho no pescoço, uma criança tiro nas costas, uma vereadora uma rajada de balas. Aí, não tem conversa nenhuma.

Mas calma que se você reparar, eu peguei a afirmação desse meu amigo, de que a esquerda é um pombo enxadrista, e joguei você pra uma perspectiva em que a direita ou o brasileiro médio isentão é o pombo. Eu fiz isso por dois motivos: primeiro, porque a situação acima já aconteceu vezes demais (uma delas culminou com bater o copo vazio na mesa depois de virar a cerveja, levantar e ir pra casa, com “tá vendo, não aguenta conversar” resmungado às minhas costas); segundo, porque a sensação de superioridade intelectual faz muito parte das opiniões dos meus colegas de opinião política. O problema disso é que, como não existe uma esquerda, acabamos entrando nesse sistema de economia de energia em conversas com pessoas que essencialmente têm a mesma opinião da gente; vemos a conversa toda se descortinando, cansamos por antecipação, passamos raiva em silêncio e nós mesmos tiramos as peças da mesa.

Vale lembrar que eu não sou nenhum bastião do diálogo, muito pelo contrário. Nos últimos anos, a exaustão me fez ter exatamente esse comportamento que eu estou acusando agora. Pra ser sincera, eu só estou falando disso porque não consigo dormir e cansei de encarar o computador, a cabeça cheia, e não elaborar a respeito (e a gente sabe que sempre são vocês quatro lendo toda vez, né?).

O conceito da semana que fez a esquerda brasileira virar uma grande praça da sé de pombos com peões no bico foi o debate sobre quem podia fazer o quê com os ícones do movimento antifascista, que se espalha pelo mundo com mais força essa semana (excelente, por sinal). Se você é do passado, durante o domingo e essa segunda-feira, pessoas apoiando as revoltas contra violência policial passaram a usar ícones, principalmente a bandeira, associados ao antifascismo.

Vou fazer um corte rápido aqui e dizer que eu acho que essa manipulação de imagem é perigosa e esvaziante, mas não pelos motivos que eu vi principalmente nomeados.

As alterações às cores, à bandeira e aos dizerem dos antifa foram indiscriminados, e a princípio correram alegremente pelas redes. Essa disseminação foi rapidamente contrariada por pombos dizendo que quem faz essas alterações não tem consciência da história do antifascismo (SEGUE O FIO); que aquilo era pra despolitizar; que era pra levar a sério. Eu vou adiantar que não gosto dessa disseminação, mas não é por esses motivos.

De outro lado, os pombos que quase me fizeram mudar de ideia: desde quando alguém tem que ter lido pelo menos dez volumes de história/filosofia/política pra poder dizer que é contra qualquer forma de fascismo? Eu, hein. Outra: qual é o problema de incluir alguma afirmação junto do apoio ao antifascimo? Foi aí que ouvi o sino da representatividade: é importante se apresentar como minoria. E é mesmo. Além do mais, esse policiamento de símbolos é um dos motivos pelos quais a esquerda sempre acaba alienando quem simpatiza com ela – o que é totalmente verdade e se alinha com o cenário de desistir de conversar que eu mencionei ali em cima.

Pra expor meu desagrado com o “médico/antifascista” “virgem antifascista” “maconheiro antifascista”, vou remeter a um francês cuja filosofia eu usei bastante na minha tese de doutorado, então infelizmente vou puxar do academicismo, mas vamo comigo (ou fecha a janela e vai fazer outra coisa, não sou sua mãe).

Vamos partir do pressuposto que a bandeira antifascista, do jeito que ela explodiu no domingo à tarde (com as cores preto e vermelha, as setas, apenas os dizeres antifascistas) é um símbolo. Como símbolo, a gente vai supor que ele tem um significado original e que esse símbolo seja, pura e simplesmente, ser contra as práticas fascistas. O movimento é uma resistência a outro movimento que ele enxerga como um ataque à humanidade como um todo. Aqui entra a parte em que existe uma história, um contexto, mas nós vamos passar por cima dele nesse momento.

Quando um símbolo se replica muito rápido, alguns fatores devem ser considerados. Primeiro, um símbolo replicado muito rapidamente vai ser alterado, necessariamente, como parte do processo que temos neste século de estabelecer identidade. Eu me identifico como antifascista? Claro, mas eu sou muito mais que isso. Sou uma professora, sou uma pesquisadora, uma revisora, uma mulher, latina, etc. etc. Quando considero trazer mais uma identidade pra mim, é difícil não lembrar das outras identidades que eu já carrego. Isso não é um problema por si só; é um processo natural que todos passam pra entender quem são; precisamos nos diferenciar dos outros para entender quem nós somos.

Existem, contudo, duas características do símbolo que ganha status de meme neste século: a deturpação (a perda total de relação com o símbolo “original”) e a exaustão muito rápida. Sim, eu estou falando do simulacro como discutido pelo Jean Baudrillard. O simulacro seria uma cópia que se desprende de um “original”. Ele seria um fenômeno que resulta de a gente replicar um símbolo tantas vezes, de maneira tão frenética, que ele perde contato com o original que teria causado essas fórmulas. A replicação rápida e descontrolada gerou:

Aqui você tem elementos suficientes pra reconhecer a bandeira antifascista. Porém, as cores foram mudadas, o tema foi alterado, o conteúdo da mensagem foi alterado, com um toque de ironia. Esse ícone não conversa mais com a bandeira ou com qualquer valor antifascista: ele apenas conversa com outros memes que comentam sobre a presença massiva dessa imagem nas mídias. A replicação leva às alterações pra processar identificação, que por sua vez aumentam de tal ponto que as imagens alteradas viram um fato social por si só; por fim, comenta-se a presença da imagem, fazendo piada com ela, e as ideias associadas à bandeira, quando não se perdem, são subvertidas ou esquecidas. O simulacro é a “cópia” que só dialoga com outras cópias, retendo alguma lembrança do “original”, mas não conversando mais com ele.

Memetizar esse ícone, então, gera esgotamento e alienação. A gente fabrica mais e mais pombos mantendo esse círculo de explosão, identificação e memetização, dia após o outro, símbolo atrás de símbolo. Esse é o motivo principal pra eu ter reagido mal ao estágio de identificação das pessoas com o símbolo.

Uma observação: quando eu digo ‘original’, vale lembrar que buscar um Original (além da cerveja) é total perda de tempo. Eu escolhi um original que convencionamos para essa discussão específica, que é a memetização de domingo até hoje, noite de quarta para quinta. Porém, pesquisadores vão te dizer que originalmente as cores eram outras, as ideias eram outras, na verdade ninguém concorda, há muito debate, etc. Tudo isso é verdade. É aí que reside, eu acho, uma dificuldade de desmontar essa grande praça da sé de bandeiras coloridas: na esquerda, estamos enxadrezando atrás de um original.

Olha, é o seguinte, nós não vamos achar. Porque isso não existe.

AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA

Então o que fazer?

A resposta curta é: nem ideia.

A longa envolve duas coisas:

  1. Desconfiar dos nossos processos de identificação. Para participar de um coletivo, nós vamos precisar colocar algumas particularidades de lado. Isso não quer dizer que, ao protestar que o fascismo é ruim, eu deixei de ser mulher, hetero, cis, latina, professora, o caralho. Quer dizer que, nesse momento, eu sou antifascista. Minhas outras identidades estão ali, que nem emoções em Divertidamente, e vão me influenciar. Mas isso não é sobre elas.
  2. Desenvolver, com muito respirar fundo e conversar, concensos dos nossos “originais”. Evitar que um símbolo se esgote envolve não necessariamente parcimônia, mas um uso consciente de como símbolos funcionam. O esvaziamento de símbolos por memes é uma estratégia muito funcional da direita, muito efetiva, mas geralmente, quando o terremoto de um simulacro passa, fica muito transparente que ele não significava nada. É mais interessante endossar símbolos que sejam mais duradouros, mas maleáveis.

Vou tentar dormir de novo.

Fugir · Surtos Políticos

This is the bad place

Quem ainda escreve blog? É um formato tão arcaico. Meu primeiro blog foi sobre teorias da série Harry Potter, feito num template do Terra. Mesmo tendo passado uns 15 anos desde a primeira vez em que eu postei em um blog, eu ainda entendo o apelo – de escrever, não de ler.

Com a dominação da maioria dos blogs pela maldição do marketing de conteúdo, uma vez que você aprende onde eles comandam que você use determinada palavra-chave, onde você deve escrever algo para fisgar o leitor, e onde realmente vai estar a informação ou a opinião – quando houver uma –, a graça dos blogs se esvaziou. Ainda existe, porém, uma graça em escrever algo que não busque cliques e que siga minimamente o caos que habita qualquer mente durante essa época de isolamento devido à quarentena.

Antes de abrir a janela pra escrever isso aqui, eu reli meus dois últimos posts. O último era sobre a vida que eu tinha consolidado na Irlanda – e agora a maluca que dança e estuda na UL deixou de existir. Se eu tivesse apostado, não acho que eu acertaria a quantidade de coisas ruins que aconteceram nesse curto período – um ano e meio –, comigo, com todo mundo que eu conheço, com o planeta, com o Brasil.

Eu nunca, nunca mesmo, vou me tornar uma pessoa que fala do Brasil com a amargura de quem enche a boca pra falar que nada aqui funciona, ou que aqui só tem ladrão, gente querendo trapacear, ou que o jeito mesmo é ir para o exterior. Quando você é parte do problema – quando você trapaceia, corrompe e mente –, o problema vai com você independentemente do país para onde você for. Porém, uma coisa que acontece quando se assenta na sua cabeça a informação de que esse mundo, esse momento, é decididamente um dos piores possíveis é: será que se eu tivesse tomado outras escolhas na minha vida, eu poderia ter feito algo ao longo dos anos que evitasse que metade dos meus conterrâneos assumisse abertamente apoiar estruturas de estado fascistas?

Fica difícil não imaginar se eu tivesse, como quase fiz, escolhido estudar Relações Internacionais ao invés de Letras. Sempre imaginei que, continuando em São Paulo, eu teria continuado iludida por mitologias como a meritocracia, como a propriedade privada, como o preto no branco. Hoje, com trinta e um anos, conheço tanta gente em São Paulo – ex-colegas de curso, inclusive – que não se tornou um bosta só porque continuou por lá. Talvez, eu tivesse me tornado tão esquerdopata quanto me tornei vindo pra Minas e fazendo Letras, mas talvez o treinamento de um curso diferente tivesse me aparelhado pra causar alguma mudança mais concreta na esfera política. Vai saber? Talvez eu tivesse me filiado a um partido, participado de congressos, militado por causas que eu acredito, e talvez houvesse menos fascistas declarados hoje.

Fascistas declarados esses que, sinceramente, tiram a vontade de viver de mim, da Amanda que de fato existe, que estudou Letras, inglês, literatura, ficção científica, e saiu disso tudo com uma contratação suspensa, nenhuma força de brigar por política e porra, quase nenhuma vontade de levantar da cama, que dirá fazer algo pra melhorar o país.

Apesar de ter estudado utopias e distopias, e entendido a importância de continuar com esperança, de se esforçar mesmo, quando não há nenhuma indicação de que isso valeria a pena, eu não consigo. Eu não vejo motivo pra olhar pro futuro com alguma nesga de esperança. Há vários meses apenas temos notícias ruins atrás de notícias ruins; qualquer limite da civilidade, do caráter, do senso de justiça já foi descartado.

Parei de escrever isso e fui, sei lá, fazer carinho em um gato enquanto pensava em porquê resisto tanto a participar de discussões online. Evidentemente, não é por um motivo só. Se é um assunto do qual eu entendo, dos dois um: ou eu estou sendo arrogante/academicista, ou eu não li certo alguma obra ligada ao tema. Se eu falo com raiva – e qualquer portador de bom senso que tenha restado hoje tem todo o direito, e quase dever de ter raiva – perco a razão por me expressar de forma emocional demais. Outra coisa que tenho medo é de cometer erros por falta de conhecimentos; a ideia de falar algo em que alguém encontre algum buraco me paraliza ou me dá preguiça de participar da discussão que virá disso. Essa parte pode ser porque eu acabei de terminar um doutorado que foi essencialmente isso, várias e várias vezes. Outro motivo é: não é mais possível começar qualquer conversa partindo do pressuposto que o meu interlocutor estará interessado no bem comum. Falar que um sistema unificado, público, universal de saúde, bem estruturado, é absolutamente necessário para evitar que pessoas morram só por ser pobres não é mais algo óbvio. Agora, talvez o pobre devesse ter se esforçado mais para ter mais dinheiro e, portanto, melhor tratamento. Agora, talvez o pobre consiga mais dinheiro vendendo um órgão (!!!). Agora, o pobre é um escorado que só absorve dinheiro do Estado e não contribui com nada.

Como é possível conversar, quando não se compartilha nenhum preceito de vida, de valor do coletivo? Pra além da conversa: como mudar uma estrutura à revelia do egoísmo das pessoas? A minha vizinha sabe, preto no branco, que ela não pode sair de casa pra passear. Mesmo assim, ela passeia. Ela sabe dos casos de covid, inclusive a dois quarteirões daqui. Ela ativamente escolhe que o conforto dela é mais importante que a vida de todo mundo a um raio de duas ou três pessoas de si. Ao falar que o auxílio emergencial é uma esmola, a plenos pulmões, na frente do prédio, ela ignora as pessoas que moram na favela a um quarteirão daqui, que não têm espaço para se isolar, nem trabalho para pegar. Essa queda tão brusca em relação ao egoísmo me quebra as pernas; eu não vejo nem saída e, pior, não vejo motivo pra procurar uma saída.

Aí eu continuo sobrevivendo, empurrando com a barriga os dias, sem sair para nada, sem me exercitar, sem ver meus amigos, sem trabalhar, sem seguir com a minha vida, praticando o bom senso que de repente é altruísmo autodestrutivo; minha saúde física e mental pioram, enquanto eu espero alguma coisa mudar, sem acreditar que algo possa mudar. O presidente é um avatar do pior do que a humanidade pode ser, pior do que eu tinha imaginado que a gente poderia ser. A gente não merece melhorias.

Felizmente, não existe meritocracia. Então eu espero.

Fugir · Uncategorized

Usando duas camadas

Fiz trinta anos quarta-feira passada. Ao contrário de quando fiz vinte, essa virada de década veio com uma leva de questionamentos sobre praticamente todas as minhas escolhas. Pra não ofender quem realmente já passou da metade da expectativa de vida, não vou chamar isso de crise de meia idade, primeiro porque tomara que não seja, segundo porque sempre que algum jovem de 23 anos fala isso eu tenho vontade de quebrar os dentes da pessoa – então deve ser assim que gente de quarenta ou mais se sente.

Eu fui pra uma conferência sobre o bicentário de Frankenstein, da Mary Shelley, na semana anterior, em Edimburgo. Apesar de a conferência ser interessante e a cidade ser linda, não dá pra dizer que foi uma viagem feliz. Eu peregrinei por 40 minutos no frio procurando um restaurante pra comer – todos estavam lotados, todos MESMO. Depois de apresentar meu artigo, feito alguns amigos, com gente chamando minha análise de excelente até, eu estava no ônibus, voltando pro hotel, quando soube que o cachorro da minha mãe, de 16 anos, tinha morrido. Dois dias antes, literalmente minutos depois de escrever pra um amigo que eu estava “de excelente humor”, fiquei sabendo que uma das crianças da rua onde eu cresci tinha morrido de câncer, depois de já ter vivido a dureza de ser gay filho de evangélicos. De cereja no bolo, um dos meus amigos aqui em Limerick tinha dado a entender que iam fazer uma comemoração do aniversário de outro amigo naquela noite. Eu sentei na minha cama no hotel, comendo um sanduíche de supermercado, e assisti uma partida de rugby, Irlanda versus Estados Unidos.

A certa altura, eu comemorei. Parei de mastigar, me olhei no espelho. Eu tinha acabado de comemorar um lance da Irlanda. Não só eu tinha entendido o que tinha acontecido na partida, como eu estava feliz com a vantagem do “meu país”.

Uai. Eu estou aqui tem três meses e meio, só. Estou aqui para pesquisar e escrever, é claro, então a ideia de que eu formei uma vida em Limerick, com rotina, lugares favoritos de ir, programas repetitivos com os mesmos amigos que me dão alegria… Bom, eu não percebi isso acontecendo. Eu não me toquei que a aula de quinta-feira, o Mother Macs no sábado pra depois ir “dançar” no Costello’s (onde o dono nos conhece!), comer kebab bêbado, virar os olhos com os meninos discutindo detalhes absurdos de História, que tudo isso sou eu agora. Geralmente eu fico tão feliz olhando pra vida que eu construí em BH que nunca me passou pela cabeça que eu era capaz de construir outra vida, que também é boa.

Que ideia revolucionária, né? O mundo não acaba quando você precisa sair do país.

Acho que é parcialmente por isso que as lembranças da vida no Brasil parecem ter sido vividas por outra pessoa quando eu lembro delas. Foi agosto que eu enchi o apartamento de amigos. Eu lembro do pessoal chegando, do namorado fazendo comida, de sentar no chão usando só uma camada de roupa (que absurdo, uma camada!), de jogar Dead Cells, de debater se o Monstronauro ia ser eleito ou não (ele foi). Lembro que a gente discutiu memes velhos – certas pessoas nunca tinham assistido o menino do Halo 3 Halo 3 Halo 3 – e de apertar meus gatinhos. Mas não parece que fui eu, essa pessoa aqui embaixo de dois edredons esperando a lasanha congelada ficar pronta, que vivi aquilo. Não parece que eu sou a mesma pessoa; e apesar de poder falar com todo mundo na internet, ainda parece que a distância literal funciona como um véu isolando a Amanda que estuda na UL e dança no sábado à noite da Amanda que estuda na UFMG e que não fica em pé num rolê nem por decreto.

Quando o avião pousou em Dublin na segunda passada, com o baque típico do piloto da RyanAir que não faz nenhuma questão de ser suave, a porta se abriu e bateu aquele vento terrível, irlandês, constante, quando eu pisei no chão. Aqui não dá pra usar uma camada só; por adaptada que eu esteja, eu sempre preciso de pelo menos uma, mas às vezes duas camadas extras. Quando eu voltei pra Irlanda, eu me senti em casa, de uma maneira que eu não achei que fosse capaz. Voltando pro Brasil, vou ficar triste demais de deixar essa segunda camada pra trás.

Surtos Políticos

O mundo não é uma distopia

Uma das lições que eu aprendi nessa década dos 2010s, já consigo dizer, é admitir os privilégios que possibilitaram meus sucessos. Eu saí de uma família pobre (outro dia minha mãe contou no telefone sobre dormir em colchões de palha com a minha vó e a irmã dela), mas eu também fui educada numa família nuclear, em que pai e mãe trabalhavam porque minha avó, aposentada, podia ficar comigo. Eu sofri bastante bullying na escola. As crianças me chamavam de lésbica (que não é um xingamento, mas sabemos que muita gente usa como se fosse), não tinham interesse em falar comigo porque eu não tinha carteirinha do clube, tevê a cabo, computador – mas eu estudava em uma escola particular, ou seja, não fiquei sem aula de física, de geografia, de português por falta de professor. Não deixei de ter material didático porque o estado não mandou a verba, muito pelo contrário; eu tinha tanto material didático que era uma piada corrente chamar a coleção extra de “intocáveis” porque ninguém fazia os exercícios deles. Maluco imaginar que a gente ria de ter material demais.

Para todos os propósitos, no Brasil eu também sou branca, então essa é outra marimba que eu nunca precisei segurar. Os tratamentos diferentes por cor de pele, ou de olhos, só acontecem comigo quando eu saio daí e, mesmo assim, é raro. Além disso, e apesar das apostas dos meus colegas de escola, até hoje tudo indica que eu sou heterossexual, então todos os livros, todas as séries, novelas, filmes ad infinitum mostravam relacionamentos com os quais eu conseguia me identificar. É claro, eu sou mulher, e essa diferença, se fosse pra escolher uma, é que mais me marcou como outro na minha experiência até hoje. Nesses meses na Irlanda, eu também me enxergo melhor como latina. Os meus privilégios, todavia, só se acumularam. Hoje eu estou na segunda metade de um doutorado que está indo surpreendentemente bem – quantas pessoas respondem felizes quando alguém pergunta pra elas “como vai a pós?”?

Agora que eu estou no caminho de me consolidar como pesquisadora dos Estudos Utópicos, tenho aprendido bastante coisa que desloca algumas certezas. Estudar utopias é muito associado a ser idealista, ou a buscar cenários impossíveis; eu já li dois capítulos da Lucy Sargisson, que soa meio de saco cheio dessa história no texto dela, falando que “perfeição” nunca fez parte de ideia de Utopia como gênero. Ela fala que até mesmo o texto fundador, do Morus, traz defeitos propositais e trechos auto-conscientes e irônicos. Nos anos 1990, outro pesquisador da minha área, o Lyman Tower Sargent, chamou os utopismos de “sonho social”, enquanto a Ruth Levitas chama de “expressão do desejo por uma forma melhor de viver”, mas ela acrescenta que esse sonho social, esse desejo por melhorar a vida das pessoas de forma coletiva, como espécie, precisa vir junto de uma chamada pra ação, ou a utopia acaba se transformando em nada mais que um “modo de viver em meio à alienação”. Outro cara, o Fredric Jameson, cantou essa pedra várias vezes, falando que é impossível imaginar um mundo totalmente fora desse em que a gente habita, sem mencionar a máxima dele, de que hoje em dia “é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”.

Ninguém nega que é impossível chegar a um modelo universal e estático, que faça todos felizes ao mesmo tempo da mesma forma sem ser totalitário. Os utópicos não divergem dos anti-utópicos porque querem bater a cabeça na parede e imaginar mundos melhores, mas porque pensadores anti-utópicos acreditam que a natureza humana é o que nos impede. O Karl Popper, por exemplo, acredita que, como espécie, nós queremos paz, mas adoramos uma porradaria; nós queremos felicidade, mas não queremos o tédio que ela traz; pra ele, nós temos o conflito dentro de si, a desigualdade dentro de si, e por isso a utopia não é só uma perda de tempo, mas também perigosa. Os utópicos divergem nesse valor básico dos anti-utópicos: mesmo sabendo que a utopia sempre vai estar no horizonte, logo ali, fora do alcance, isso não quer dizer que o trajeto para buscar melhorias utópicas não seja benéfico.

Acreditar que todo mundo, independentemente de raça, idade, classe social ou gênero, merece acesso a hospitais e tratamentos de saúde é um dos motivos que a minha mãe, diagnosticada com câncer de mama em 2016, recebe tratamento de graça do governo. Acreditar que todo mundo merece acesso à educação em todos os níveis é um dos motivos que eu fui a primeira da minha família a chegar a uma universidade pública, um dos motivos pra eu ter concluído mestrado e estar no doutorado. Acreditar que todas as pessoas, depois de anos de serviço, devem receber um valor do governo para viverem a velhice com tranquilidade, é um dos motivos pro meu pai estar se aposentando em breve.

O impulso utópico começa no impossível, é claro. As faces da utopia, muitas vezes, trazem os projetos terminados; a gente vê o Estado funcionando, a gente vê a pobreza erradicada, a gente vê as violências de gênero erradicadas, e isso dificulta imaginar como que teria sido o processo de construção de um mundo assim. Mas, como meu orientador fala exaustativamente, a utopia não é uma planta pra ser seguida, mas um método pra imaginar caminhos, pra sonhar socialmente.

Parece que a gente vive em uma distopia hoje em dia, parece demais. Essa ideia está errada não só porque não entra na definição do Lyman Tower Sargent (“uma sociedade não existente descrita em detalhe considerável e normalmente localizada em tempo e espaço que autor desejou que fosse vista por um leitor contemporâneo como consideravelmente pior do que a sociedade na qual o leitor viveu”), mas porque o presente, por difícil e por assustador, não define o futuro e não define as nossas ações. Além do mais, para uma observadora que existisse duzentos anos atrás, esse mundo nosso ainda poderia ser maravilhoso – a realidade não é sonho social, nem pesadelo social. A realidade é um conjunto de ferramentas que nós temos.

Agora, isso são comentários de alguém se descobrindo utópica, talvez. Nós temos impulsos horríveis dentro de nós, mas por algum motivo, nós tendemos a chamar só os impulsos horríveis de naturais. Por que é natural causar violência, mas não é natural sonhar socialmente? Por que argumentar que a desigualdade é natural, quando grupos buscaram e conquistaram enormes feitos a favor da igualdade? A gente, francamente, perde muito tempo se preocupando com o que é e com o que não é natural e isso nos distrai de pegar todas as nossas ferramentas, os nossos privilégios e os nossos traumas e opressões, pra imaginar mundos melhores – pra construir mundos melhores.

 

(alguns dos autores que eu mencionei aqui eu tenho PDFs, mas todos em inglês. Se quiser, é só me pedir e passar seu email, porque outro valor utópico meu é que todo mundo merece livre acesso ao conhecimento.)

Surtos Políticos · Viagens

Como Nossos Pais

Tem uma lista de músicas no meu celular que eu batizei de “viagem emocional”. Desde que cheguei na Irlanda, em agosto, eu evito escutar. Conforme o segundo turno das eleições no Brasil se aproxima, evitei ainda mais. Finalmente, depois de comprar água pra semana e um sanduíche no supermercado aqui do lado, deixei tocar “O bêbado e o equilibrista” e, mais importante aqui, “Como nossos pais”, na voz da Elis Regina.

A geração dos meus pais, nascida nos anos 60, foi alfabetizada e escolarizada durante a ditadura militar no Brasil. Quando eu tinha uns doze anos, eu descobri um livro antigo da minha mãe, da disciplina absurda de “Educação Moral e Cívica”, e fiquei mais chocada ainda com o capítulo que falava da “Revolução” de 64, e não do golpe militar, como hoje é conhecido (de forma certa).

Pra minha geração, criada com disciplinas como História, Geografia, estudos sociais, até mesmo literatura, a inércia das pessoas de 45 anos ou mais parece inaceitável, e muita gente compra brigas e discussões sobre política com os parentes. O que a gente não lembra é que nós de 20 e 30 anos tivemos uma educação muito mais variada do que eles, independentemente da qualidade. Enquanto eu tive professores tanto que defendiam o capitalismo como o socialismo, a geração antes da nossa nem votar pra presidente podia aos 18 anos.

Mas tem uma coisa que essa geração dos nossos pais entende, que é a música.

Os shows de calouros, os programas de rádios; algo que floresceu mesmo naquela época, mesmo com a censura, foi a música. Eu mesma fui criada ouvindo competição de calouros no Raul Gil, com a minha vó e a minha mãe na sala. Indiscutivelmente, a música que se escolhia para demonstrar capacidade vocal era, claro, “Como nossos pais”.

Não quero lhe falar, meu grande amor / Das coisas que aprendi nos livros
Quero lhe contar como eu vivi / E tudo que aconteceu comigo

Outra coisa que a minha geração faz é usar dos anos de escola, desse privilégio que a gente teve, pra tentar convencer a geração anterior de que a gente sabe do que está falando. Então, aos meus pais, aos amigos dos meus pais, a todo mundo que pensa que o Bolsonaro pode significar mudança, não me escuta porque eu estudei História, Geografia, o cacete: me escuta quando eu te falo da minha vida e da dos meus amigos.

Este ano, encontrei um amigo no centro porque estava vendendo um livro pra ele. Despedimos. Eu já estava em casa quando, horas depois, fiquei sabendo que ele tinha sido perseguido na rua por um grupo de homens que queriam matá-lo. Por quê? Porque ele é um homem gay.

Este ano, uma professora universitária recebeu inúmeras ameaças de morte, porque ela tem opiniões políticas de esquerda, assim como eu, assim como meus amigos mais próximos, assim como meu namorado. Este ano, uma amiga minha, adulta, honesta, tem medo de combinar de encontrar o pessoal nos bares, porque tem medo de acontecer com eles o que aconteceu com esse amigo do parágrafo anterior.

O que isso tem a ver com o Bolsonaro, você pode me perguntar. Desde 2012, quando ele começou a ficar mais famoso, ele já falou que pessoas negras não servem nem pra procriar. Já falou para uma colega deputada que ela não merece ser estuprada. Já falou que é a favor de tortura e que não se importa com a morte de alguns inocentes no caminho. Quando um líder fala essas coisas, a população entende, com razão, que ela pode cometer as mesmas agressões. Se é pra falar de mim, vamos lá: você, lendo esse texto, acha que eu, o meu namorado, os meus amigos, os meus colegas de curso, de trabalho, merecemos ser expulsos do país ou mortos? Eu duvido, porque, no dia a dia, nós não temos problemas. Eu pago contas, eu cumpro compromissos, eu voto.

Por isso, cuidado meu bem, / Há perigo na esquina
Eles venceram, e o sinal está fechado pra nós / Que somos jovens

Quando a Elis (ou o Belchior) falam aqui do perigo na esquina, eles não estão falando do perigo de assalto, e sim do perigo do militar vigiando qualquer atividade suspeita. Esse é um assunto sobre o qual eu queria estar errada – se eu estiver errada, NOSSA, que alegria que vai ser! –, mas esse perigo na esquina não é o rapaz que te rouba um celular; é o oficial, pago e mantido pelo Estado, que pode te prender ou te torturar se resolver que o bandido é você. Quando a gente entrega o poder assim, todo mundo é bandido. O sinal fechado pra jovens é pra gente, como eu, que protesta na rua (e vai continuar protestando), que já tomou gás lacrimogênio, que tentou ocupar o espaço público. Quando você vota no Bolsonaro ou quando você acredita que militares são bons governantes, sou eu, a geração que vocês criaram, que vocês estão jogando na fogueira.

Para abraçar seu irmão e beijar sua menina na rua
É que se fez o seu braço, o seu lábio, e a sua voz

Lembra quando beijo entre gays e lésbicas era um absurdo? Lembra quando um monte de coisa era absurda e depois a gente tirou cinco minutos pra pensar e percebeu que não tinha nada demais? Nem todo mundo acha isso, e muitos desses são violentos.

Nossos ídolos ainda são os mesmos / E as aparências não enganam, não

Agora, eu entendo ter medo do crime. Eu entendo sentir que você não tem controle das coisas. O jeito como o Bolsonaro fala dá a impressão de que a gente precisa retornar a um passado mais firme, em que as coisas mudavam mais devagar. O apelo dele é pras memórias bonitas daquele passado – só que aquele passado matou gente, tirou poder de decisão das suas mãos; os cantores que você gosta tinham que dar quinze voltas pra publicar uma música. Música e arte em geral podem falar de coisas diferentes do que parece. “Como nossos pais” parece que é sobre a gente virar adulto e cometer os mesmos erros dos pais que nos criaram, mas não é bem assim.

Minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo que fizemos
Ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais

Por que, afinal de contas, a gente repete erros do passado? Porque a gente não é honesto consigo mesmo quando olha pra trás. De novo, falam que gente de esquerda é monstro, inventam que a gente quer destruir o país. De novo, perseguem, batem, até matam quem não vive de acordo com uma moral inventada. Se a gente ignora os crimes da ditadura militar no Brasil, a gente não aprende. Se não aprende, não faz melhor no futuro. Eu cometo os erros que você cometeu que seus pais cometeram que seus avós cometeram. A gente fica pra sempre preso nesse ciclo de negação, só sobrevivendo e eternamente batendo a cabeça na parede. Mas

O novo sempre vem.