Semana passada, eu estava ouvindo podcast enquanto cumpria minha meia hora de esteira na academia. Passando por uma série do Chico Felitti – não, calma, a outra –, a narração dele sobre como tentou conversar com antigos atrasados do Enem incluiu uma dessas moças: ela primeiro aceitou dar entrevista, remarcou algumas vezes, até finalmente confessar ao telefone que não conversaria com ele em momento nenhum. O motivo dela para isso é o que ficou na minha cabeça e ressurgiu agorinha, enquanto eu escovava o dente antes de dormir: ela disse que não queria falar com ele porque pressupunha-se que hoje ela falaria sobre como superou a humilhação de ficar presa do portão, com gente rindo, fotografando, entrevistando. Outros entrevistados falaram justamente sobre isso: no ano seguinte fizeram de novo e passaram, conseguiram prouni; de alguma maneira tinham superado o episódio terrível que era o espetáculo dos atrasados do Enem na década passada. Essa moça, não: ela sentia que a vida dela hoje não era um fim da história do qual ela se orgulhava. Se ela desse entrevista nesse momento, em que ela não superou, não deu a volta por cima e saiu vitoriosa, essa seria a narrativa dela. A história acabaria ali, e o ato de recusar a entrevista foi sua maneira de comunicar que não tinha acabado ainda.
Fiquei intrigada com ela maneira de tomar o controle da narrativa da própria vida, ainda que seja pela teimosia, porque semana passada morreu de repente uma pessoa que eu conhecia (não era íntima minha, mas eu conhecia o suficiente para ir ao enterro). Esse cara teve uma soma final muito triste. Estava sozinho, bebia há anos, não cuidava da saúde, abusava dos familiares e, quando casado, abusava das esposas também. Mês passado, estive num almoço em que ele estava também, e senti uma mistura de pena e riso quando estávamos falando sobre elevadores de parques de diversões e ele apareceu com manuais de elevadores de verdade – ele tinha trabalhado em construções das olimpíadas no Rio e claramente aquele era um trabalho que tinha lhe marcado pra cortar o efeito da cachaça e para ele ir buscar os manuais antigos provando que, sim, ele tinha participado daquela grande coisa.
Eu já estava ao longo do dia deprimente pensando no desperdício de vida, raciocínio esse que, claro, me levou a pensar em como estou desperdiçando a minha vida, o que me levou de volta ao momento em abril quando pensei (não pensei; parecia que meu corpo ia se mexer sozinho) em pular do décimo andar, e eu por um bom tempo me senti como ele; passando pelos dias como dá, ciente que o melhor já passou, que ambições são inúteis e que existem, sim, limites de onde a gente pode chegar. Enquanto isso, minha amiga começava a desenvolver o processo de luto pelo irmão; contou de quando ele cometeu uma gafe, contou de quando eles brigaram na semana anterior, contou de quando a ex-esposa dele também foi escrota (e vou evitar os detalhes dessas histórias que não são minhas). Quando o sol estava descendo – estávamos no alpendre da casa dela, um latão de cerveja diante de cada uma em plena terça-feira útil –, o assunto tinha virado para música. Mencionei que tinha odiado um passeio num evento de rock que tinha feito recentemente; ela disse que tinha gostado muito, ido de novo, e de repente os olhos dela se abriram mais: ela lembrou da vez em que comprou uma camisa do Iron Maiden num show em São Paulo e trouxe para esse irmão dela. Ela olhou pra linha do muro, deu uma puxada no cigarro e me disse: “Nossa. Consegui achar uma lembrança boa que tenho com ele”. Dali pra frente, parecia que uma fase de sofrimento (dentre várias) do luto tinha amainado.
A história desse homem, diferentemente da atrasada do Enem, não está mais sob o controle dele. Quem conta essa história agora é a irmã, a sobrinha, a mãe que enterrou o filho, sou eu aqui nesse blog que ninguém lê. Por isso, acho, que me vi pensando na atrasada do Enem: ela está fudida também (sinceramente, que não está?), mas ela quer ao menos reter controle de como a narrativa dela funciona, não só para os curiosos de podcast, mas para si mesma, eu imagino.
Eu tenho um rascunho de post parado aqui no blog há um mês, sobre como eu não virei uma professora. Sinceramente? Eu não consigo terminar aquele texto, porque ele não é honesto. Eu falo das coisas que me fazem má professora, das chatices dos alunos, do processo insano e muitas vezes injusto que é conseguir emprego como professor de federal. Todos esses são mecanismos (que infelizmente eu enxergo) para eu tentar não sofrer tanto com o fato de que eu não vou atingir esse sonho que eu tive durante todo tempo. De maneira muito pior do que a moça, eu estava tentando controlar a minha narrativa… Mentindo pra mim mesma. É claro que dar aula dá um puta trabalho. Ao menos no início, cada aula preparada leva o tempo de um seminário de pesquisa de pós, quase. Se eu falo que eu não dou certo como professora, o tempo dedicado a fazer mestrado e doutorado parece que dói menos; parece que dói menos ter me dedicado e não ter conseguido; dói menos fazer trabalhos precarizados ou fora do que eu planejei pra mim.
Tem um mote que se repete ao longo de todo o desenvolvimento do musical Hamilton, meu favorito. Ele é explicitado na música em que George Washington conversa em particular com o protagonista pela primeira vez, e depois é repetido ou alterado:
Let me tell you what I wish I’d known / When I was given my first command
You have no control / Who lives, who dies, who tells your story
Não é possível que só eu tenha essa angústia: quanto tempo até o esquecimento completo? Qual controle eu posso exercer sobre a minha narrativa? Por que eu não consigo juntar força para seguir o cretino conselho de “estudar e pesquisar depois de trabalhar, perseverar, não desistir” etc.? Eu me sinto entregue. Às vezes eu me culpo, porque eu não tinha que criar expectativas grandiosas de coisas que eu claramente não tinha como conseguir ser, sabe? Os sinais estavam lá durante os anos de mestrado e doutorado; só eu que, arrogante, achei que não significavam nada. Eu queria que a minha história fosse a de alguém que veio de uma família pobre no interior, que aproveitou as oportunidades que surgiram, que fez uma vida nova do zero em uma cidade grande e foi estudando e conseguiu virar professora federal. A realidade é que não só eu não consegui, como não há mais oportunidades – e mesmo se houvesse, eu sinto que algo irreparável morreu em mim, uma confiança na minha capacidade, e que vou me torturar passando por isso de novo – e eu não tenho publicação quase nenhuma. Também não consigo me motivar a publicar. Tudo parece inútil; parece que estou fazendo uma dança para ninguém. A verdade é que eu estou sozinha no meu apartamento, cuidando de quatro gatos, trabalhando com qualquer coisa envolvendo texto e o par inglês-português, sem nenhuma confiança de que estou fazendo nem isso direito, a dona do apartamento pediu ele de volta, enquanto isso o aluguel subiu 10%, eu me endividei viajando para fazer as mesmas provas que quebraram qualquer resquício de espírito que tinha sobrevivido a dois anos de pandemia, então é o seguinte: eu não tenho controle sobre a minha história. Eu quero parar de reclamar, juro que quero. Quero fazer da narrativa da minha vida algo que valha a pena. Porém, sinceramente, todo dia quando acabo de trabalhar, eu só me sinto exausta.