The Casual Vacancy, publicado no Brasil como A Morte Súbita, é a primeira tentativa de J.K. Rowling de escrever um romance para adultos, sem nenhuma referência ou conexão com o mundo mágico da série Harry Potter.
Terminei de lê-lo ontem, e finalmente pude ler spoilers: a maioria dos comentários apontava coisas previsíveis no livro e mesmo que ele seria pouco criativo. Particularmente, eu achei as críticas um tanto quanto cruéis demais; afinal de contas, desde que ela própria era criança, J.K. escrevia literatura infantil ou infanto-juvenil. Eu não diria que é o livro mais sensacional publicado em 2012 – até porque neste ano foi publicado o The Fault in Our Stars, do John Green – possivelmente o melhor dele até agora, na minha opinião.
De qualquer maneira, o enredo geral de Casual Vacancy é numa cidadezinha pequena, Pagford, que não é um cidade em si, mas é como um distrito da cidade maior, Yarvil. No começo do livro, Barry Fairbrother morre subitamente enquanto levava a mulher para jantar no clube de golfe. Outro casal que estava lá, Miles e Samantha Mollison, os ajudam chamando a ambulância e indo até o hospital, mas não adianta.
Barry era um conselheiro distrital, o que seria, creio eu, o equivalente a um vereador; a morte de um conselheiro é chamada de, não por acaso, casual vacancy, e muito do livro é construído sobre quem seria a melhor pessoa para preencher o seu lugar. Barry é constantemente construído como quase um santo: ele tinha projetos bons, lutava para resgatar jovens e adolescentes de situações de risco… Enfim, ele se doava inteiramente. Aí está uma expectativa minha que não se concretizou: fiquei o livro todo esperando alguém desmitificar Barry, o que não aconteceu. O tempo todo você vê gente falando dele, e os que falam mal são personagens profundamente desagradáveis e conservadores. Não sei, esperei ver, sei lá, que no final ele teria feito algo bastante ruim. E nada. O cara permanece santo até o final.
Há uma variedade de personagens no livro, e isso é um ponto forte constante de J.K.: as imersões dentro dos personagens, e o modo como ela descreve seus sentimentos e o mecanismo de seus pensamentos. Eu daria destaque à familia de Sikh, os Jawandas, especialmente a mãe, Parminder, e a filha Sukhvinder (espero ter escrito certo o nome da menina). A mãe, por ser apaixonada por Barry e por seu marcado descontrole – se ela não pirasse tanto na batatinha, ela seria perfeita demais – e a filha por ser vítima clássica de bullying, inclusive com o que creio ser Síndrome de Borderline. Mas também, é claro que eu, sendo eu, simpatizaria com a Sooks (como ela é apelidada pela amiga Gaia).
Eu francamente queria ter a disposição de falar de todos os personagens.
Howard Mollison, que dá pra chamar de vilão do livro, não mostra uma característica positiva: ele é a personificação do conservadorismo, preconceituoso, elitista e cego às necessidades dos outros, além de adúltero, mal educado e convencido de si próprio – o que chega ao ápice quando o filho é eleito para o lugar de Barry no Conselho. Ele foi outra decepção; porque, ao contrário de Barry, eu acho que esperei uma humanização dele. Nós temos imersões na cabeça da mulher dele, Shirley, da nora, Samantha, e ainda que a narrativa justifique o comportamento dele – descrevendo o começo das questões políticas – , ele não tem profundidade. Quer dizer, por que ele se casou com Shirley, por exemplo, que é filha de uma prostituta? Por que eles chegaram ao acordo mencionado pela mulher de que “eles não precisavam de sexo”? Eu acho coerente que eles escolham Miles como favorito, e que praticamente tenham expulsado de casa a outra filha, Patrícia – uma mulher muito mais bem sucedida, que mora em Londres e tem um relacionamento estáve com uma mulher. Porém, a maldade dele e o descaso com sua própria saúde não estão bem fundamentados, na minha opinião.
Eu também queria falar um pouco da Samantha, esposa de Miles. A narrativa chega muito perto de fazer slut-shaming com ela, o que acho um pouco preocupante. Ela tem um casamento frustrado; achou que estava se casando com um homem independente, mas ao longo dos anos ela observa enquanto Miles progride para ficar exatamente igual ao pai; ela começa a fantasiar loucamente com um menino de boyband, e chega a comprar ingressos com a desculpa de dar um presente à filha, mas acaba não indo, ficando muito bêbada e pegando um menino de dezesseis anos no aniversário do sogro. Eu honestamente não a condeno. Ela se sente presa em um ambiente hostil – porque Pagford é extremamente hostil -, vive frustrada sexualmente, presa em uma existência que não quis pra si. Mas com duas filhas e o marido eleito para o Conselho, ela sabe que jamais conseguirá escapar – e não conseguirá mesmo porque, tragicamente, ainda ama o marido.
Vou ter que ficar devendo um comentário sobre Fats e os Wall de forma geral, mas vale lembrar que Fats é o único que acaba de fato se responsabilizando pelas coisas que fez – e por mais algumas. Ele desenvolve esse conceito, na minha opinião ridículo, de autenticidade, em oposição à prática de todos que vivem sob a moral e bons costumes, fazendo o que se deve, e etc. Filho do vice diretor da escola, ele é francamente insuportável e desafia o pai em toda oportunidade possível.
Contudo, na minha opinião a personagem principal é, sem dúvida, Krystal Weedon. Ela é uma adolescente problemática, sua mãe vive entrando e saindo do tratamento para se livrar do vício em heroína, tem um irmão pequeno chamado Robbie que vive mal alimentado, ou sujo ou mesmo esquecido ao lado da mãe enquanto ela faz sexo por drogas. Krystal é vista como uma vadia por toda a cidade, porque, de fato, ela faz sexo com quem quer – Fats, principalmente -, e apenas a assistente social, Kay Bawden, a vê como alguém responsável e apegada ao irmão. Krystal se encarrega de levar o menino à escolinha, briga com traficantes e faz o máximo para proibir a mãe de cair no vício de novo. Krystal não gosta de Kay – ela gostava de verdade é de Barry Fairbrother, que vira algo de especial nela ao criar o time de remo. Antes da morte dele, esse time de remo era a melhor coisa na vida de Krystal, onde ela até fez amigas – Sukhvinder entre elas – e aqui temos até o elemento cômico do hino do time de remo: Umbrella, de Rihanna!
No clímax do livro, Krystal decide tentar engravidar de Fats; aquilo seria sua fuga definitiva dos Fields, um condomínio de apartamentos numa área afastada, cheio de criminosos e viciados, para uma casa em Pagford, criando seu bebê e seu irmão, longe da influência da mãe e do traficante que chega a estuprá-la em uma cena horripilante.
Dessa forma, Krystal foge de casa com o irmão, determinada a encontrar Fats e tentar engravidar mais uma vez. Ela deixa o irmão sentado num banco com um pacote de chocolate e vai para o mato trepar com Fats. Numa sequência trágica, a criança fica com sede e sai andando pelos arredores. Para resumir a tragédia, ele cai no rio e se afoga, não sem antes Sukhvinder aparecer, ver o menino no rio e pular para tentar salvá-lo. Krystal, enlouquecida ao ser encontrada pela polícia com a notícia da morte do irmão, corre para a casa da mãe, arruma a colher, o isqueiro e a heróina e trata de se dar uma overdose fatal.
O suicídio de Krystal é uma atitude desesperada. É um elemento trágico. Nos faz pensar sobre como ela tinha uma humanidade que ninguém via, que ninguém queria ver. Krystal era uma personagem bem construída, e pelo menos eu, como leitora, me percebi torcendo para que sim, ela conseguisse dar o golpe da barriga em Fats, e sim, ela saísse daquela vida. Mas tentando sair daquela vida é que ela acaba pulando de cabeça na cadeira de eventos que a levaria a se matar. A única pessoa que acreditava nela está morta, os aliados de Barry não tem força nem poder de continuar lutando pela manutenção da clínica de reabilitação ou pelos Fields. O desespero e a desistência de Krystal pra mim são o resultado final de uma história em que todo mundo perde. Os conservadores elegem Miles Mollison, Krystal não consegue provar seu valor, e a cidade não pensa por um momento em quem ela foi – apenas comentam com estranheza o esforço do falecido Barry em tentar provar o valor das pessoas dos Fields.
The Casual Vacancy não é um livro que faz você se sentir bem. Não é mesmo. Talvez por isso eu não saiba dizer tanto qual é a minha impressão final. Eu tenho que mencionar o fato de que no começo eu enxergava J.K. por trás da narrativa; mas conforme a história prossegue, eu me esqueci completamente dela, e me percebi lendo grandes porções da tora de papel em um dia só, então eu diria que o livro tem a mágica da narrativa da tia J.K..
Tenho que mencionar o trabalho editorial lindo do capa dura que comprei. Papel de qualidade, fonte e tamanho perfeitos, e a capa, que quando vi na internet tinha detestado, é muito aprazível não só aos olhos, como ao toque. Um livro que vale o dinheiro.
Vale lembrar que eu foquei o meu comentário nos personagens, mas eu poderia ter escolhido falar da trama impulsionada pelo Fantasma de Barry Fairbrother, mas eu preferi não focar na cena já prometida na orelha do livro sobre como todos teriam segredos e tralalala. Ao ler J.K., sempre tenho a impressão que são os personagens que fazem a trama, e não o contrário.
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